quinta-feira, 7 de abril de 2011

É hora de julgar os crimes económicos contra a humanidade?

Da mesma forma que se criaram instituições e procedimentos para julgar os crimes políticos contra a humanidade, é hora de fazer o mesmo com os crimes económicos. Este é um bom momento, dada sua existência difícil de refutar.
É urgente que a noção de “crime económico” se incorpore ao discurso cidadão e se entenda a sua importância para construir a democracia económica e política. No mínimo, isso far-nos-á ver a necessidade de regular os mercados para que, como diz Polanyi, eles estejam ao serviço da sociedade e não o contrário.
Segundo o Tribunal Penal Internacional, crime contra a humanidade é “qualquer acto desumano que cause graves sofrimentos ou atente contra a saúde mental ou física de quem o sofre, cometido como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil”. Desde a Segunda Guerra Mundial estamos familiarizados com este conceito e com a ideia de que, não importa qual tenha sido sua magnitude, é possível e necessário investigar estes crimes e punir os culpados.
Situações como a gerada pela crise económica tem feito com que se comece a falar de crimes económicos contra a humanidade. O conceito não é novo. Já nos anos 1950, o economista neoclássico e prémio Nobel, Gary Becker, introduziu a sua “teoria do crime” em nível microeconómico. A probabilidade de que um indivíduo cometa um crime depende, para Becker, do risco que assume, da possível vitima e do possível castigo. A nível macroeconómico, o conceito foi usado nos debates sobre as políticas de ajuste estrutural promovidas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial durante os anos 1980 e 1990, que acarretaram gravíssimos custos sociais à população da África, América Latina, Ásia (durante a crise asiática de 1997-1998) e Europa do leste. Muitos analistas apontaram esses organismos como responsáveis, especialmente o FMI, que perdeu muito prestígio após a crise asiática.
Hoje são os países ocidentais que sofrem os custos sociais da crise financeira e de emprego, e dos planos de austeridade que supostamente lutam contra ela. A perda de direitos fundamentais, como o trabalho e a habitação, e o sofrimento de milhões de famílias que vêem em perigo a sua sobrevivência são exemplos dos custos aterradores desta crise. Os lares que vivem na pobreza estão a crescer sem parar. Mas quem são os responsáveis? Os mercados, lemos e ouvimos todos os dias.
Num artigo publicado na Businessweek, no dia 20 de Março de 2009, intitulado “Wall Street’s economic crimes against humanity”, Shoshana Zuboff, antiga professora da Harvard Business School, sustentava que o facto de os responsáveis pela crise negarem as consequências de suas acções demonstrava “a banalidade do mal” e o “narcisismo institucionalizado” nas nossas sociedades. É uma mostra da falta de responsabilidade e da “distância emocional” com que acumularam somas milionárias e que agora negam qualquer relação com o dano provocado. Culpar só o sistema não era aceitável, argumentava Zuboff, assim como não seria culpar, pelos crimes nazistas, só as ideias e não aqueles que os cometeram.
Culpar os mercados é efectivamente ficar na superfície do problema. Há responsáveis e são pessoas e instituições concretas: são aqueles que defenderam a liberalização sem controlo dos mercados financeiros; os executivos e empresas que se beneficiaram dos excessos do mercado durante o boom financeiro; aqueles que permitiram as suas práticas e que permitem agora que saiam imunes e fortalecidos, com mais dinheiro público, em troca de nada. Empresas como Lehman Brothers ou Goldman Sachs, bancos que permitiram a proliferação de créditos podres, empresas de auditoria que supostamente garantiam as contas das empresas, e pessoas como Alan Greenspan, chefe do Federal Reserve norte-americano durante os governos de Bush e Clinton, opositor ferrenho da regulação dos mercados financeiros.
A Comissão do Congresso norte-americano encarregue de investigar as origens da crise foi esclarecedora neste sentido. Criada pelo presidente Obama, em 2009, para investigar as acções ilegais ou criminais da indústria financeira, entrevistou mais de 700 especialistas. O seu relatório, tornado público em Janeiro passado, conclui que a crise financeira poderia ter sido evitada. Assinala falhas nos sistemas de regulação e supervisão financeira do governo e das empresas, nas práticas de contabilidade e de auditorias, e na transparência nos negócios. A Comissão investigou o papel directo de alguns gigantes de Wall Street no desastre financeiro, por exemplo, no mercado de subprimes, e das agências encarregadas do ranking de bónus. É importante entender os distintos graus de responsabilidade de cada actor deste drama, mas não é admissível a sensação de impunidade sem responsáveis.
Quanto às vítimas dos crimes económicos, em Espanha um desemprego de 20% há mais de dois anos significa um enorme custo económico e humano. Milhares de famílias sofrem as consequências de terem acreditado que pagariam hipotecas com salários mileuristas: 90 mil execuções hipotecárias em 2009 e 180 mil em 2010. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego é metade da espanhola, mas envolve cerca de 26 milhões de pessoas sem trabalho, o que implica um tremendo aumento da pobreza num dos países mais ricos do mundo. Segundo a Comissão sobre a Crise Financeira, mais de quatro milhões de famílias perderam as suas casas, e quatro milhões e meio estão em processo de despejo. Cerca de 11 bilhões de dólares de “riqueza familiar” desapareceram com a desvalorização de patrimónios, incluindo casas, pensões e poupanças. Outra consequência da crise é o seu efeito sobre os preços dos alimentos e outras matérias-primas básicas, setores para os quais os especuladores estão a desviar os seus capitais. O resultado é a inflação dos seus preços e o aumento ainda maior da pobreza.
Em alguns casos notórios de fraudes como o de Maddof, o autor está na prisão e o processo judicial contra ele continua porque as suas vítimas têm poder económico. Mas em geral aqueles que provocaram a crise não só obtiveram lucros fabulosos, como também não temem castigo algum. Ninguém investiga as suas responsabilidades nem as suas decisões. Os governos protegem-nos e o aparato judicial não os persegue.
Se tivéssemos noções claras de que se trata de um crime económico e se existissem mecanismos para investigá-los e persegui-los, muitos dos problemas actuais poderiam ter sido evitados. Não é uma utopia. A Islândia oferece um exemplo muito interessante. Em vez de resgatar os banqueiros que arruinaram o país em 2008, a promotoria abriu uma investigação penal contra os responsáveis. Em 2009, o governo inteiro teve que renunciar e o pagamento da dívida foi suspenso. A Islândia não socializou as perdas como estão a fazer muitos países, incluindo a Espanha, mas decidiu aceitar que os responsáveis fossem castigados e que seus bancos falissem.

Lourdes Benería é professor de Economia na Universidade de Cornell. Carmen Sarasúa é professora de História Econômica na Universidade Autônoma de Barcelona. Artigo publicado originalmente no jornal El País, no dia 29 de março de 2011.

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